1.2.07

suposição de permissão de civilização

O não tem toda a razão quando diz que "ser moderno" é votar contra a despenalização voluntária da gravidez até às dez semanas, por opção da mulher em estabelecimento de saúde credenciado ou autorizado.
Obviamente que isto de ser moderno tem os seus perigos, como a imbecilidade da afirmação! Não se é, nem se pensa ser o que quer que seja (moderno, antigo, estúpido, bonito, feio, gordo, magro, alto, baixo, bom, mau) só porque o afirmamos, por decreto ou por título (adquirido ou roubado). Parecemos (tanto do lado do não como do sim), quando bramimos veementemente estes epítetos, o tal país provinciano que tantos escritores descreveram ou acusaram. Em "O Provincianismo Português" Fernando pessoa afirma que " Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz.(...)O provinciano, porém, pasma o que não fez, precisamente porque não o fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo."1
Não nos dizemos modernos, não nos dizemos civilizados, não nos dizemos inteligentes, não nos dizemos ter mais razão do que os outros! Ou somos parte do fenómeno ou então, externamente e de forma analítica, como que "sacudindo a água do capote",
não vale dizer como somos(como se ao ser bastasse uma etiqueta para se classificar, como sendo coisa de laboratório) .
O que me pasma é a aproximação civilizacional às descrições de Orwell, Huxley e Zamiatine, onde o funcionamento utopicamente "perfeito" das massas dá-se pelo controlo da intimidade (física e psicológica) do indivíduo. Eu (como indivíduo) pertencendo a um todo, que para funcionar bem (como fusível de um circuito de dependências rápidas de exequibilidade), tenho de me condicionar à sua forma, enformando o meu ser ao meu estar-aí. Até aqui definimo-nos como seres adaptados a lugares não amorfos, os lugares da intolerância (porque somos parte do fenómeno), dos grupos sócio-culturais. O problema dá-se quando esta intolerância, pertencente ao corpo (entenda-se corpo como personificação do ser em espaço físico), estende-se ao indivíduo (íntimo, não passível de protecção por persona ). Aí temos os espaços amorfos onde, no limite, tudo poderá ser falsamente permitido ou fatalmente interdito.

Hoje parecemos viver nos não-lugares, os não-amores, os não-filhos, a não-escrita, o não-ensino. Vivemos em lugares não-físicos onde habitamos em rede, com cada vez mais personas . Projectamos filhos que antes só o perceberíamos quando visível na barriga ou cá fora e pela mulher quando o sentisse nas entranhas. Hoje podemos vê-los em ecografias agora a 4D (o Picasso era um visionário), com os seus batimentos, as suas formas, os seus movimentos. Tudo se torna visível, e passa do inexistente, porque desconhecido, ao existente, porque visível. Os estatutos de criança, de pré-adolescente, de adolescente, de idoso também se foram adquirindo com a nossa evolução (da ciência, da medicina, da psicologia). Mas já lá estava tudo, contudo arrogantemente afirmámos que não, nada disso, desconfiámos de Galileu, que deu lentes à civilização.
"As pessoas não sabem o que querem!" (disse-me um dia um professor) "As pessoas não sabem viver em liberdade!Tiraram-lhes o medo, e a culpa é da ciência!" (disse-me outro professor). Eu quero acreditar que há pessoas que sabem o que querem, ou pelo menos algumas coisas que querem, e que podemos viver em liberdade sem nos armarmos em beatas castigadoras da intimidade alheia.


1 In Notícias Ilustrado, nº 9, série II, Lisboa,12 de Agosto de 1928.

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