12.6.09

"Como construir a sua moradia sem ter que aturar um arquitecto"

via: http://www.sobrevoando.net




de
Rui Campos Matos
(escrito para o Diário de Notícias da Madeira, secção “Arquitectura e Território)


"Quantas pessoas, quando chega o momento de construir a moradia com que sempre sonharam, não passam pela aflição de perguntar a si próprias: será que vou ter de aturar um arquitecto?

Neste pequeno artigo, tentarei explicar como construir uma nova casa, sem se sujeitar às exigências de um desses profissionais. Para que o empreendimento seja levado a cabo com êxito há que fazer três importantes escolhas: estilo, técnico e empreiteiro.


O estilo

Eis-nos perante a primeira decisão a tomar - o estilo da casa. Felizmente não é difícil porque existem apenas dois: o tradicional (também conhecido por rústico) e o moderno, que vem colhendo cada vez mais adeptos entre os jovens.
O tradicional caracteriza-se pelo típico telhado de aba e canudo, a janela de alumínio aos quadradinhos, a lareira de cantaria com a sua chaminé e o imprescindível barbecu, testemunho dos inumeráveis prazeres da vida rústica. Já o moderno é completamente diferente, tão diferente que até as coisas mudam de nome. O telhado desaparece, dando lugar à cobertura plana; a janela perde os quadradinhos e passa a chamar-se vão; à chaminé, em tubo de aço inoxidavel, chama-se fuga; e barbecu é um termo obsceno que deve ser evitado na presença das senhoras.
Não existem, pois, quaisquer espécie de dúvidas quanto a questões de estilo - ou se é tradicional ou se é moderno, as duas coisas ao mesmo tempo é impossível.

O técnico

Escolhido o estilo, há que escolher o alfaiate, que aqui designaremos pelo técnico. Trata-se de uma escolha muito fácil, porque o que não falta são técnicos. Intitulem-se eles construtores civis diplomados, agentes técnicos de engenharia, electricistas habilitados ou desenhadores habilidosos, todos se regem pela mesma cartilha, a de João de Deus: o pinto pia, a pipa pinga… Não passaram cinco anos a estudar arquitectura? Não estagiaram mais dois? Que importa isso?

Concentremo-nos apenas nas suas virtudes:
1- Projecto elaborado em tempo recorde.
2- Preço: 999 €.

Mas como conseguem eles ser tão eficazes?

É simples: antes de encomendado, o projecto já está feito. Até parece milagre! Mas não é, o que se passa é o seguinte: o técnico tem duas pastas no computador, uma para projectos em estilo tradicional, outra para os modernos. Escolhido o estilo pelo cliente, é fácil, emenda daqui, remenda de acolá e, numa tarde, o projecto está feito! Para quê complicar?
“Mas o rapaz parecia semi-analfabeto, disse que não podia assinar o projecto, mas que havia outro técnico que podia…”. Não é caso para preocupações, trata-se de uma situação corrente em que um técnico analfabeto paga a um técnico habilitado para que este, a troco de uns trocos, assine de cruz. Está tudo incluído no pacote e, (ironia do destino!), quantas vezes o técnico habilitado não é um arquitecto daqueles que faltaram às aulas de religião e moral…
Aprovado o projecto, o técnico já não é preciso para nada. É dizer-lhe adeus que ele até agradece, porque de obra não percebe nada nem quer perceber, quem percebe disso é o empreiteiro – a nossa terceira e última escolha.

O empreiteiro

O primeiro encontro entre cliente e empreiteiro costuma ser decisivo. É nele que terá de se estabelecer, entre o primeiro e o segundo, uma relação de confiança cega, em tudo semelhante à fé. A fé de quem acredita que, com um projecto feito por um técnico, que não especifica nada, que não pormenoriza nada e que não quantifica nada, não vai ser enganado por um homem que passa o dia a fazer contas de cabeça… Entre cinco pequenos empreiteiros, como escolher o indicado para construir a moradia? Infelizmente, chegados a este ponto, não posso recomendar senão fé, muita fé e confiança, porque tudo o resto é irrelevante:
1- O valor do orçamento é irrelevante, foi feito com base no projecto do tal técnico, é um número atirado para o ar, um número que, com os imprevistos, há-de subir ainda umas quantas vezes.
2- O prazo estabelecido para concluir a obra vai depender do bom ou mau tempo e, nesse capítulo, só Deus sabe.
3- As garantias dadas são as que estão na lei - cinco anos. Se a casa apresentar defeitos, reclame; se a reclamação não for atendida, recorra ao tribunal (também pode recorrer ao pai natal se achar que demora menos tempo…)
Em suma, não vale a pena perder tempo com ninharias, o mais importante é ter fé.

Conclusão

Se, apesar de conscienciosamente feitas estas três escolhas, as coisas não correrem lá muito bem, se a casa ficar pelo dobro do preço, se no Verão se assar lá dentro e no Inverno se tiritar de frio, se para abrir a porta do armário for preciso arrastar a mesa de cabeceira, se o vizinho protestar com o barbecu, se a cobertura plana meter água, não vale a pena desesperar, resta sempre a consolação de não ter tido de aturar um arquitecto."





Rui Campos Matos

arquitecto

fonte : Quinta-feira, Novembro 16, 2006 in arqportugal.blogspot.com

5 comentários:

jraulcaires disse...

Que fazer... - É a vida...

O Siza e o Souto Mora começaram a sua carreira a fazer casas porque eram professores universitários e tinham outras coisas entre mãos.

Enquanto houver curiosos e "engenhocas" a fazer projectos de 300m2 por 1000€, isto vai ser complicado.

E, depois, vai continuar a ser complicado.

Porque eles vão todos tirar um curso.

Mas a maior culpa da situação continuará sempre a ser dos "arquitectos".

Nas Câmaras, nas coisas que fazem, etc...

Existem muitos a facturar muito e bem com o "Status Quo".

E são os piores, os mais ignorantões, etc...

De modo que... A verdade é que continuam a existir muitas alternativas no campo das artes e ofícios para um arquitecto.

Para se sustentar. E poder prestar serviços com um mínimo de dignidade...

jraulcaires disse...

E, tendo uma base, é preciso começar a investir em grande. Talvez uns concursos. Apesar de tudo o que sabemos. Tentar angariar promotores e "virar o bico ao prego".

Não sei. Eu ando assim. Mas se há coisa que detesto fazer é má Arquitectura. Nem sei se faço boa Arquitectura, mas enfim...

jraulcaires disse...

E depois...

Continua a haver muitas coisas para fazer...

Sustentabilidade, ordenamento do território - hoje em dia é coser uma manta de retalhos - mas é preciso continuar a estudar e tentar chegar aos sítios certos.

Eu, já sou velho, posso continuar a estudar, mas não vou chegar a lado nenhum.


Não faz mal. Eu gosto de estudar.

Tudo pode enriquececer o meu trabalho.

jraulcaires disse...

Agora..; pensando em Arquitectura enquanto Arte...

Não sei...

jraulcaires disse...

Já vi que está um post mais acima a que responderei opotunamente.

Lembrei-me que, no campo disciplinar, ainda existe a história, a memória e o património. E o seu futuro...

Se pensarmos em habitação social, a etnia, a miopia e a construção...

E muito mais coisas a explorar, certamente...