19.4.10

Dos organismos e dos esqueletos

Este homem consegue nos seus edifícios integrar as artes como o fizeram os góticos, por exemplo e veio provar-me de que é possível (embora com génio) resolver o tal dilema a que já me referi neste diário: dum lado, o funcionalismo mais ou menos prosaico nas arquitecturas, e do outro os museus cheios de pinturas e de esculturas mais ou menos modernas.E Taliesin é também uma lição no que respeita à prisão dum edifício aos valores naturais e humanos. Ali uma família e um Homem presos a uma terra, um conjunto de edifícios nascendo duma paisagem, a tudo presidindo um pensamento e uma forma. Ali uma força enorme liga coisas e seres. E pensar eu que vi um templo indiano e uma casa de chá japoneza no Museu de Philadelphia e claustros românticos em Nova York! O poder de integração em Taliesin é tão forte que chega a ofender-se Deus pensando que Wright também foi o creador daquela paisagem!Vi muita coisa na América até hoje: desde as melhores Racket Girls do mundo, até à altura do Empire State, vi estatísticas e números e cadeias de montagem, vi edifícios e arquitecturas, vi museus e planos e planos, vi highways e prosperidade por todo o lado: mas a poesia, a humanidade e a grandeza, só as encontrei em Wright. Tudo o que vi compreendi pela inteligência; aqui o pouco que vi permitiu-me sentir tudo sem nada me ter sido explicado. Os edifícios de Taliesin não são crianças em idade; alguns terão os trinta ou quarenta anos, o que aliás o seu estado de conservação deixa advinhar, no entanto, mesmo que estivessem em ruínas, conteriam ainda um grande poder de expressão, como vi monumentos do passado; o que seria uma ruína da Vila Savoie ou uma ruína do Seagram Building? O tempo em Taliesin joga a forma da arquitectura e da paisagem, o que creio não acontece em 90% da arquitectura moderna. Vi há tempo a casa de Gropius em Lincoln: quando vi Taliesin, a casa de Gropius pareceu-me um frigorifico pousado numa colina! Não há dúvida que o Zevi tem razão: o Sr. Giedion enganou-se, ao por Wright no princípio e Le Corbusier no fim do seu livro; foi um pequeno engano… de pôr tudo ao contrário. E o mundo sente, todos nós sentimos (e eu chorei por isso mesmo) que me falta qualquer coisa, que a máquina está perturbada que o caminho não é exactamente este e que os anos passam…Estamos a fazer uma arquitectura de "esqueletos decorados"; e Wright conseguiu crear organismos. Quem se atreve a discutir a forma de um dedo, a cor de uma flor ou o bico de um pelicano? São assim… porque são assim.É isso que nós precisamos de fazer em lugar de andar a vestir esqueletos com pinturas e esculturas ou a apresentar os esqueletos em pêlo como se um animal fosse apenas o seu esqueleto ou a qualidade dum vinho pudesse apreciar-se pela fórmula química que o representa…

in Diário da Viagem aos USA, 1960 ; Arq. Fernando Távora

3 comentários:

jraulcaires disse...

Escritos de um mestre... apareceu-me no outro dia um tipo a sustentar um aforismo segundo o qual a erudição seria inimiga da cultura... - claro que não;

Quanto à poesia a grandeza e a humanidade, lembro-me de Oscar Wilde - os que enconram significados belos nas coisas feias, são artista, os que encontram significados feios nas coisas belas são corruptos.

E, não seria capaz de, peremptóriamente pôr o Zevi à frente do Giedion ou vice versa;

Até porque o "movimento moderno", não são só os "herois".

Mas, já muita água correu sobre as pontes e, talvez até haja aqui um bocadinho de "parti pris".

Continua a ser um belo testemunho, este...

jraulcaires disse...

aconteceu-me aqui uma coisa engraçada. estava eu, a escrever um texto enorme sobre a pele e o esqueleto, em que até o eng. Santo metia ao barulho, sobre a relação que nós temos com um monte de coisas, etc, e o meu PC, Kaput, e foi tudo com os porcos.

Também, verdade se diga, não sou importante, não escrevo nada de importante, e ninguém liga nada ao que eu digo.

Quando me lembrar, escrevo outra vez.

jraulcaires disse...

O zevi, era dos poucos livros de Arquitectura que existiam na biblioteca da Escola Secundária onde estudei, já nessa altura queria ser arquitecto, embora não estivesse muito consciente do que é que isso implicaria... - mas isso já é outra conversa. O Giedion, li pouco depois.

lembro-me que aquela edição do Zevi tinha um "post facio" do Nuno Portas que também era interessante.